A Lei de Moisés e a compreensão do aparentemente incompreensível

Uma explicação da legislação judaica, preparatória para a cristã, voltada especialmente para as leis que não parecem fazer sentido.


"Moisés é o caminho da destruição ao favorecimento."

Destruição (Shemad) = Shin (300) Mem (40) Dalet (4) = 344

Moisés (Moshe) = Mem (40) Shin (300), Hei (5) = 345

Favorecimento (Ratzon) = Reish (200) Tzade (90) Vav (6) Nun (50) = 346

A Lei judaica, dada por Deus a Moisés no Monte Sinai, é habitualmente dividida em três tipos gerais de normas:

Mishpatim, as normas a que poderíamos chegar pelo uso da razão;

Eidot, as normas referentes a festas e comemorações, a que não poderíamos chegar pelo uso da razão, mas que depois que aprendemos o seu significado, fazem sentido; e

Chukim, as normas que aparentemente não fazem sentido algum.

O tema deste trabalho é fundamentalmente os Chukim, mas para que possamos entender melhor a diferença entre os três tipos de leis, devemos antes de mais nada proceder a uma explicação da natureza dos Mishpatim e das Eidot.

A Lei Natural é aquela Lei gravada pelo Senhor no coração de todos os homens. 

Se tomarmos qualquer religião não-revelada (hinduísmo, budismo, taoísmo, xintoísmo, etc.) veremos que eles têm, de uma forma ou de outra, no seu código de comportamento, a Lei Natural. Perguntando-se a um sábio chinês se é lícito matar ou roubar, a resposta será negativa. Isso não ocorre porque ele tenha recebido uma revelação de Deus, mas simplesmente por ser fácil perceber que uma sociedade em que o assassinato ou o roubo fossem lícitos seria uma sociedade que não perduraria por muito tempo. Para que o homem possa subsistir socialmente, para que seja possível ao homem conviver mais ou menos pacificamente com seus irmãos, faz-se necessário que sejam seguidas algumas regras básicas de moral, que correspondem à Lei Natural.

A Lei Natural está expressa de forma condensada e perfeita nos Dez Mandamentos. Esta Lei, porém, apesar de estar inscrita por Deus no coração do homem, nem sempre é percebida ou seguida por este. Isto se deve à condição do homem depois da Queda.

Esta é a razão pela qual foi necessário que Deus, ao dar ao Povo de Israel a Lei de Moisés, incluísse nesta Lei prescrições que pareceriam evidentes (os Mishpatim), visto corresponderem à Lei Natural e estarem ao alcance da razão. Podemos ver esta necessidade ao perceber que em todas as religiões naturais (não reveladas) existem normas e hábitos contrários à própria Lei Natural que elas procuram expressar.

A noção de Izkor, memória, lembrança, é importantíssima no judaísmo. As normas denominadas Eidot são em geral normas referentes à memória das grandes datas da história do judaísmo, aos usos, festas e lutos em memória destas datas, etc.

Este é um ponto central da religião judaica: não esquecer. Não esquecer a escravidão no Egito, não esquecer a libertação da escravidão por Deus. As normas chamadas Eidot são portanto normas relativas basicamente a esta característica da fé judaica, que tem horror ao esquecimento. Para que tenhamos a percepção do significado da memória na fé judaica, basta que vejamos, por exemplo, a própria estrutura do texto bíblico. Não é uma Lei apenas, é uma gigantesca memória, um enorme relato da História da Salvação, no qual as leis estão marcadas não só pela sua necessidade ou adequação lógica ao ponto em questão, mas - pela própria estrutura narrativa do relato bíblico - pela sua inserção em um determinado momento da História, a ser sempre lembrado e marcado por usos e normas.

Mas também encontramos dentre os 613 mandamentos (Mitzvot) da Lei de Moisés muitos que parecem não fazer sentido, que parecer ser apenas caprichos insensatos de um deus irracional.

Qual seria o significado destes mandamentos? Para quê serviriam leis cujo fim não é perceptível, que parecem fugir à razão e contradizê-la?

A resposta a estas perguntas é um dos pontos centrais da visão de mundo judaica, e o principal testemunho da Lei de Moisés como pedagogia preparatória para a Nova Lei.

Estes mandamentos, chamados Chukim, são mandamentos que parecem não fazer sentido. A respeito deles, nos diz Maimônides: "Há pessoas que consideram difícil dar uma razão para qualquer mandamento, e consideram correto dizer que os mandamentos e proibições não têm nenhuma base racional. Eles são levados a adotar esta teoria por uma certa doença n'alma, cuja existência eles percebem, mas que não são capazes de descrever ou discutir". A respeito destes mandamentos, porém, nos lembra Maimônides, está escrito: "Porque nisto [no cumprir dos mandamentos] está a vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todos estes preceitos [Chukim], digam: Eis um povo sábio e inteligente, uma nação grande".

E prossegue Maimônides: "A verdade, porém, é indubitavelmente como dissemos, ou seja, que cada um dos seiscentos e treze preceitos serve para inculcar alguma verdade, remover alguma opinião errônea, estabelecer relações adequadas na sociedade, diminuir o mal, treinar em bons hábitos, ou prevenir contra os maus hábitos."

No Guia dos Perplexos, Maimônides enceta uma breve descrição dos preceitos, ordenados por categoria, e tenta explicar a razão de cada um deles: "Considerarei agora os preceitos de cada categoria, e explicar a razão e uso dos que são tidos por inúteis ou irracionais, com a exceção de alguns poucos, cujo objetivo ainda não compreendi".

O princípio das explicações dadas por Maimônides, contudo, é um princípio bastante evidente: a Lei dada por Deus serve para atrair o homem para Deus; os preceitos podem ser explicados como negando uma prática idolátrica comum àqueles tempos, como induzindo o homem ao bem e aos bons hábitos, como levando em suma o homem a reconhecer sempre Deus como fim último de seus atos. Os preceitos que não são compreensíveis, segundo Maimônides, não o são porque "a maior parte dos chukim cuja razão nos é desconhecida serve como uma cerca contra a idolatria. (...) Se conhecêssemos todos os particulares do culto idólatra e estivéssemos informados dos detalhes de suas doutrinas, veríamos claramente a razão e a sabedoria de cada detalhe [dos chukim aparentemente incompreensíveis]".

Conhecer a razão dos Chukim, porém, não é considerado pela Tradição judaica algo necessário para seu bom cumprir, podendo até mesmo atrapalhar a alguns, que levados pelo orgulho, considerariam a sua razão, o seu entender limitado, como o parâmetro da correção e necessidade dos mandamentos.

A palavra "Chok" (plural "Chukim") é relacionada etimologicamente com chakikah, gravar (como um relevo) ou traspassar.

Isso leva à percepção metafórica da superioridade do cumprimento dos mandamentos cuja razão permanece obscura sobre o cumprimento daqueles que nos são inteligíveis: Assim como a tinta, ao ser depositada sobre o papel ao escrever, não se torna parte do papel nem o papel parte da tinta, o mandamento que é cumprido e compreendido como uma regra sábia e racional não é cumprido tão-somente por amor a Deus, mas também pela própria razão vista nele. Assim a tinta (representando a inteligência humana) e o papel (representando o desejo da alma de, cumprindo o mandamento, servir a Deus) se unem, mas cada um agindo por si, permanecendo sempre separados. A tinta (inteligência) chega a tornar-se um obstáculo no cumprimento perfeito dos mandamentos, cobrindo e tampando o papel (a alma).

Já os chukim, como vemos pela própria similitude etimológica com o que é gravado, nos levam a uma percepção metafórica diferente da inscrição dessas ações em relação à alma humana em seu desejo de servir ao Senhor.

Assim como ao gravar letras em madeira ou pedra as letras fazem parte do material gravado, não sendo algo colocado acima dele, não o obscurecendo nem tampando, o cumprir dos chukim é algo que serve à alma em seu desejo de servir a Deus, elevando-a ao deixá-la agir sozinha, por puro amor, sem que haja necessariamente obra da inteligência. Aquilo que é amável a Deus se torna amável à alma que O ama.

E alguns chukim, cujo significado é ainda mais obscuro, são, em seu cumprimento, como o gravar de letras vazadas: não se criam sombras, não se causa obscurecimento de nenhum tipo na alma sequiosa de Deus. A luz passa através do espaço entre as letras, fazendo com que brilhe a pedra em que foram gravadas.

O Chok de significado incompreensível no judaísmo é, por antonomásia, o mandamento da Novilha Vermelha (Parah Adumah). Deste mandamento está escrito: "Este é o estatuto [Chok] da Lei [Torah] que o Senhor prescreve". Diz a Tradição Oral judaica que foi usada esta formulação e não, por exemplo, "Este é o chok da novilha", ou "Este é o chok da oferta pelos pecados" porque o Chok da Parah Adumah reflete a totalidade da Lei.

Diz igualmente a Tradição Oral que é em relação ao mandamento da novilha que o Rei Salomão escreveu "Tudo tentei por adquirir a sabedoria. Eu disse: Far-me-ei sábio, e a sabedoria retirou-se para longe de mim, muito mais do que dantes estava. A sua profundidade é grande, quem a poderá sondar?"

Trata-se de um mandamento repleto de paradoxos:

É uma oferta que torna o puro impuro, e purifica o impuro; é um sacrifício ofertado fora do acampamento.

É um sacrifício que torna o sacrificante impuro (não apenas aquele que faz o sacrifício, mas também quem queimou a novilha, quem levou as cinzas da novilha, quem usa da água feita com as cinzas da novilha, quem nesta água toca...), ou até mesmo requer que esteja impuro! - No tempo do Segundo Templo, o sacerdote que faria o sacrifício da novilha era, antes de fazê-lo, tornado impuro pelo contato com o cadáver de um animal rastejante... Mas por outro lado, é um sacrifício que purifica aqueles que tiveram contacto direto ou indireto com cadáveres, estando assim atingidos pela mais grave de todas as formas de impureza.

Além disso, é um sacrifício que é feito fora do acampamento, e é fora do acampamento que são guardadas as cinzas da novilha. Isto causa espécie, mais ainda quando se pensa que todos os sacrifícios devem obrigatoriamente (com exceção deste) ser feitos no altar construído na tenda do Senhor!

A explicação clássica judaica destes dois pontos que causam estranheza (tanto maior por ser este considerado o Chok por antonomásia) é simples, e é impressionante ver como ela se adequa perfeitamente à explicação a que temos acesso depois de completada a Revelação em Cristo:

O sacrifício que torna impuro o puro que o oferece e puro o impuro mais grave ensina o valor de tornar-se impuro, isto é, de rebaixar-se, para que o irmão seja purificado. Ensina humildade, ensina obediência, e mostra a necessidade do auto-sacrifício, abandonando o egoísmo.

O sacrifício que é feito no deserto, fora do acampamento, em meio aos escorpiões, cobras e outros animais peçonhentos, tendo como resultado a purificação daquilo que de outro modo não poderia jamais ser purificado, mostra como Deus tem força para agir até mesmo através daquilo que ninguém quer, fazendo do que é medonho, impuro, perigoso e assustador motivo de purificação e de júbilo, ao trazer do deserto, do exterior impuro, a purificação do interior.

São Tomás de Aquino nos ensina que todos os mandamentos dados por Deus aos judeus por Moisés têm uma razão, ainda que não seja uma razão direta; eles podem até não ser direcionados diretamente ao culto a Deus na forma como se colocava então, mas todos têm uma razão em relação a algo mais.

O objetivo dos mandamentos cerimoniais aparentemente irracionais é portanto duplo: por um lado, como instruções para fazer o que era necessário no culto a Deus da Antiga Aliança; por outro, como figura preparatória do Cristo ainda por vir. Explica-se-nos o Apóstolo: "todas estas coisas lhes aconteciam em figura".

O mandamento da Novilha Vermelha, que segundo a Tradição Oral judaica significa toda a Lei, é indubitavelmente figura do Sacrifício de Cristo na Cruz:

"A novilha vermelha significava Cristo em respeito a sua fraqueza assumida [ao se tornar semelhante a nós em tudo, menos no pecado], como denotado pelo sexo feminino; a cor da novilha, enquanto isso, designa o Sangue de Sua Paixão. A 'novilha vermelha de idade perfeita' porque todas as obras de Cristo são perfeitas; 'na qual não haja nenhum defeito e que não tenha levado o jugo' porque Cristo era inocente, e não havia levado o jugo do pecado. Mandou-se que a levassem a Moisés, porque Ele foi acusado de ter transgredido a Lei de Moisés ao romper o Sábado. E foi mandado que a levassem 'ao sacerdote Eleázaro' porque Cristo foi entregue às mãos dos sacerdotes para ser morto. Ela era imolada 'fora do campo' porque Cristo 'padeceu fora da porta'. E o sacerdote mergulha 'o dedo no sangue dela' porque o Mistério da Paixão de Cristo deve ser considerado e imitado.

Ele [o sangue da novilha] era aspergido sobre a 'porta do tabernáculo', que denota a sinagoga, para significar quer a condenação dos judeus descrentes ou a purificação dos crentes; e isto 'sete vezes' devido aos sete dons do Espírito Santo ou aos sete dias em que todo o tempo está compreendido. Novamente, todas as coisas que dizem respeito à Encarnação de Cristo devem ser queimadas no fogo, isto é, devem ser compreendidas espiritualmente; pois a 'pele' e a 'carne' significam as obras exteriores de Cristo; o 'sangue' denota a força interior sutil que movia os Seus feitos externos; os 'excrementos', Sua fadiga, Sua sede, e todas as outras coisas que dizem respeito à Sua fraqueza. Três coisas são adicionadas, a ver, 'pau de cedro', que denota as alturas da esperança ou da contemplação; 'hissopo', em sinal de humildade ou Fé; 'escarlate duas vezes tingido', que denota dupla caridade; pois é por estes três que devemos nos unir ao sofrimento de Cristo. As cinzas desta queima era reunidas por 'um homem puro', pois as relíquias da Paixão tornaram-se posse de gentios, que não eram culpados da morte de Cristo. As cinzas eram postas na água para o propósito de expiação, porque o Batismo recebe da Paixão de Cristo o poder de lavar o pecado."
Fora isso, é mais que evidente o significado das "estranhezas" conforme explicado pela Tradição Oral judaica em sua aplicação a Nosso Senhor Jesus Cristo: foi ao se fazer semelhante a nós, rebaixando-se, que o Cristo Jesus pôde morrer a mais ignominiosa das mortes para nossa Salvação; não haveria maior amor que este, o de sofrer uma morte dolorosa e considerada fator de impureza, para que a todo homem fosse dado o potencial de Salvação pela graça de Deus. Assim o tornar-se Deus homem que sofre morte indigna, o Puro, o mais puro e inocente de todos, se tornou, aos olhos do mundo, impuro, e os impuros pudemos assim nos purificar.

Do mesmo modo a ação de Deus no meio do deserto da incompreensão, em meio aos animais pestilentos e peçonhentos, que traz da maior baixeza à total redenção é magnificamente exemplificada pelo sacrifício "fora da porta", ou "no deserto".

Muitos outros são os Chukim, ou mandamentos cujo objetivo escapa à compreensão da razão; mas todos eles, todos, sem exceção, tem um significado, muitas vezes duplo: preparação figurativa para a vinda do Cristo Salvador e, secundária porém imediatamente, rejeição de práticas idolátricas, o que também não deixa de ser uma maneira de preparar-se para compreender e aceitar ao Cristo Jesus.


©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
Aviso ao leitor: Alguns artigos foram escritos em algum momento dos últimos quinze anos; as referências neles contidas podem estar datadas, e não garantimos o funcionamento de nenhuma página de internet nele referida.

1 comment: