Fontes litúrgicas do voyeurismo e do exibicionismo

Artigo sobre como a má liturgia ensina que pudor é besteira

Há poucos dias tive ocasião de presenciar a justa indignação de um pároco ao lembrar que, chegando a sua paróquia (situada em uma pequena cidade rural do Estado do Rio) ao raiar de um domingo, encontrou, no ponto de ônibus defronte à porta da Igreja, um casal entregando-se a um comportamento que, em outros tempos, a sociedade reconhecia como exclusivo de casais legítimos e restrito à intimidade do quarto fechado.

A justa indignação deste sacerdote, porém, levou-me a pensar sobre as origens deste exibicionismo e voyeurismo hoje tão comuns em nossa sociedade. Mulheres e homens são filmados e fotografados nus ou em circunstâncias privadas. Programas de televisão especializam-se em acordar pessoas famosas sob a luz dos refletores. Na França, a intimidade total de um grupo de pessoas trancado em um apartamento está sendo televisionada e transmitida pela Internet. Cada pormenor escatológico, cada detalhe das preferências íntimas de cada "celebridade", tudo isso está sendo incessantemente filmado, fotografado, descrito, comprado, vendido. Disfunções e taras sexuais são propagandeadas, detalhes da vida sexual e conjugal são postos à venda no mercado de informações.

Podemos, sem medo de errar, afirmar que em nossa sociedade o voyeurismo é hoje em dia a regra. podemos afirmar tranqüilamente que para os meios de comunicação de massa - e para a imensa maioria de sua fiel audiência - o exibicionismo é visto como virtude.

Ora, quais seriam as origens deste comportamento tão destoante do comportamento natural (no sentido não apenas de conforme às leis naturais, mas também provado pelo tempo como sendo o mais universalmente aceito em todas as culturas)? Por que em nossa sociedade hodierna temos um nível de exibicionismo tão grande?

Antes de mais nada, devemos lembrar que nas origens latinas de nossa sociedade sempre houve um cuidado menor em impedir a violação da privacidade alheia que em outras culturas. Não são frutos de nossa sociedade a treliça e a veneziana que permitem a vista de dentro para fora enquanto impede que os passantes vejam o interior das residências; não são frutos de nossa sociedade os longos trajes femininos que cobrem até a face das mulheres, preservando-as da vista de estranhos.

Quando o Império Romano foi cristianizado, uma das primeiras providências foi justamente uma busca de resguardo e modéstia maior por parte dos cristãos romanos. Este resguardo, porém, não atingiu jamais as proporções que tomou em sociedades já por si mais recatadas.

Nas várias liturgias orientais temos uma clara visão da diferença entre este cuidado e recato dos povos mais a Leste em comparação com o dos latinos.

Sabemos que a celebração da Santa Missa é o encontro conjugal de Nosso Senhor Jesus Cristo com Sua Esposa, a Igreja. Freqüentemente ouvimos o sacerdote proclamar que são felizes os convidados para o banquete nupcial do Cordeiro. O banquete nupcial é uma tradição oriental; é um banquete que ocorre logo após a consumação do matrimônio, feita ao ocorrer o primeiro encontro conjugal. Este encontro conjugal sempre foi - em todas as tradições litúrgicas - coberto de recato. Nas liturgias orientais, tudo ocorre, literalmente, a portas fechadas. Um grande biombo, chamado iconostase, separa os fiéis do altar. A ninguém é dado ver o que está a ocorrer por trás daquele biombo. apenas sacerdotes podem penetrar naquele recinto. Na Segunda Guerra Mundial, quando os Aliados se viram forçados a revistar igrejas gregas em áreas recentemente libertadas das garras nazistas, por medo de lá encontrarem bombas e outras "lembrancinhas" da parte dos vencidos, apenas os capelães católicos foram autorizados pelas autoridades eclesiásticas a revistar a área resguardada do olhar do povo pela iconostase.

Já no Rito Latino, no lugar da iconostase sempre tivemos apenas a baixa voz do sacerdote e seu próprio corpo a agir como biombo, impedindo a visão da consagração. Após a consagração de cada espécie, o sacerdote A levanta para adoração do povo, mas a consagração propriamente dita é feita em segredo e em voz em baixa, resguardada de olhares curiosos pelo próprio corpo paramentado do sacerdote.

Os paramentos sacerdotais, também amplos e tornando difícil a definição do corpo do sacerdote, cumprem igualmente uma função de tornar mais difícil a visão deste encontro do Esposo e da Esposa sobre o leito do Altar.

Do mesmo modo, o acesso ao presbitério sempre foi vedado às mulheres; os homens não-ordenados (como os coroinhas) sempre foram ao menos cobertos de vestes ao estilo sacerdotal, por exercerem uma função que é, se não privativa do sacerdócio ordenado, ao menos percebida desde sempre como uma etapa no caminho da ordenação.

Infelizmente, porém, nos últimos trinta anos estranhas modas começaram a surgir. Provavelmente de maneira inconsciente, sem perceber o que se estava a fazer, a imensa maioria dos padres passou a eliminar completamente o recato na liturgia - recato que já era muitíssimo menor no Rito Latino, especialmente em comparação com o dos Ritos Orientais.

Este mesmo sacerdote cuja justa ira tive a ocasião de presenciar celebra atrás do altar, sem cobrir assim com seu corpo o encontro de Esposo e Esposa. A iluminação é feérica, apesar do apagão. Em torno do altar encontram-se leigos e leigas, vestidos com roupas de uso cotidiano. Alguns usam alba, outros estranhas túnicas acinzentadas. Meninas estão junto com meninos, em torno do altar, tocando os utensílios sacros. O próprio Cálice usado para a espécie de vinho é transparente!

Ora, o que está ocorrendo ali? Isso é praticamente uma adesão ao espírito voyeurista e exibicionista em voga em nossa sociedade. Não é de se espantar que estas modas tenham entrado em vigor aproximadamente ao mesmo tempo que ocorria a chamada "Revolução Sexual". O encontro conjugal do Divino Esposo com Sua Esposa, a Igreja, ocorre nesta e em muita paróquias sob iluminação feérica, com seus sons amplificados eletronicamente, com a assistência de testemunhas de ambos os sexos, sem sequer o corpo do sacerdote a dar um mínimo de intimidade ao resguardar da visão dos fiéis o que está a ocorrer.

A liturgia tem efeitos imensamente mais poderosos que o que se pode sequer imaginar. Aquilo que ocorre na liturgia sempre foi, tradicionalmente, revestido de sentido. Cada gesto litúrgico, cada pequeno movimento dos dedos, sempre foi ordenado pela Igreja de modo a transmitir aos fiéis o efeito desejado, o ensinamento desejado. Quando tudo passa a ser livre, quando tudo passa a ser visto, quando o encontro conjugal do Cordeiro passa a ser não apenas visto, mas iluminado eletricamente e amplificado por potente aparelhagem de som, o que se aprende ali é que não há sentido no pudor, não há sentido no recato.

Justa é a ira deste sacerdote, mas também lhe cabe uma parcela de culpa. Muitas vezes ele já foi interrompido por casais que, na igreja feéricamente iluminada, pareciam dispostos a conceber seus herdeiros em um cantinho. Muitas vezes ele já reclamou às autoridades policiais dos excessos que ocorrem na rua defronte à paróquia. O que ele está ensinando, porém? O que ele está simbolizando e significando por intermédio do mais poderoso meio de comunicação jamais à disposição de um homem, a Sagrada Liturgia? Infelizmente a mensagem oposta à corretíssima mensagem por ele ensinada em suas homilias.

Enquanto em suas homilias é pregado o valor do recato e da castidade, no altar é dado o exemplo - tornado ainda mais potente por ser uma união sobrenatural - da mais elementar falta de modéstia e recato.

Esta perda do sentido por parte do clero das referências, dos símbolos, dos significados presentes em cada pequeno gesto, é tão mais estranha por ter ocorrido paralelamente a uma tomada de consciência deste mesmo poder por parte dos profissionais de comunicação de massa. Enquanto estes buscam vestir a todos com camisetas com a grife bem à vista, os padres esquecem suas vestes talares. Enquanto os profissionais da comunicação buscam meios de tornar os seus slogans cada vez mais repetidos, o clero alterna Orações Eucarísticas como se de sua alternância dependesse sua validade. Enquanto os profissionais da comunicação tomam todo o cuidado em nunca colocar em suas propagandas nenhum símbolo que possa conduzir a uma percepção estranha à que pretendem transmitir, os sacerdotes apontam holofotes e microfones para o encontro mais íntimo que possa jamais existir... e nas homilias reclamam do exibicionismo e do voyeurismo que eles mesmos - de modo aparentemente inconsciente - incentivam e ensinam.

Que Deus tenha piedade de todos os que não tiveram outra oportunidade de aprender que não a Liturgia, onde da forma mais poderosa que é dada ao homem lhes foi ensinado como certo o que é errado.

1.VIII.2001, Dia de Sto. Afonso Maria de Liguori.


©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
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